3/02/2005

holes

Tu telefonas porque te sentes só. Queres saber de alguém que esteja tão aborrecido como tu e te ouça. Tu queres que alguém te atenda e pergunte como estás, onde estás e para onde vais. Tu não te queres sentir tão sozinho. Assim de repente, queres que te digam que tens uma bela voz e que falas tão bem como um apresentador de televisão. Queres que te admirem. Também queres admirar.
Queres ouvir uma voz aborrecida como a tua, pronta a dizer palavras articuladas, não calculadas, como as tuas. Só queres encontrar alguém despreocupado.
Queres que seja bonita, assim como tu pensas que é ser bonito. E queres que tenha uma voz de onde exalem os sons que reconheces. Queres comentá-los. Queres aprender coisas, mesmo aquelas que já sabes, mas gostas que te ensinem outra vez.
E pretendes perguntar de que é feita essa tal pessoa que te atende, pretendes imaginá-la e cuidá-la no teu infinito de solidão. Queres que ela sonhe contigo, depois de desligares.
Ficas perdido no não saber se o fazer de novo. Se te ligar de novo à voz que te atendeu. Assutaste-te, ela disse que te podia matar com uma colher no chá. Veneno no chá, foram as palavras que ela usou. E perguntas se será possível, poderia a voz tão aborrecida como a tua matar-te?
Gostaste do que falaram, tudo pareceu de verdade. E sonhaste com ela e ela sonhou contigo. Não se matam pessoas assim. Não as que sonham contigo.
Ligas de novo, queres saber de mais palavras, conhecer mais da voz. Queres imaginar mais. Ficaste com sede e dizes olá. Já lhe sabes o nome e ela já te sabe o teu. E riem, porque depois de sonharmos rimos sempre. As coisas inesperadas propositadas são sempre engraçadas.
Fingem de velhos amigos. Discutem política e religião, exaltas-te. Gostas tanto da tua opinião e agora ela quer ouvir-te. E sentes-te tão bem. Planeiam uma viagem imaginada juntos e falam da lua em dialectos desconhecidos. Decidem beber chá. Chá ou café. Pensas que café não é bom, vicia e dá mau hálito, mas ela gosta. No telefone não sentes cheiros. Também não vês a cor do cabelo dela. Querias saber como lhe são os dentes e a boca, quão grandes lhe couberam as mãos nos braços e como cruza as pernas sentada.
Prometes que lhe ligas. Ficas tanto tempo a falar que te envergonhas. Perdes a noção sem saber e o instinto toma conta. Procuras sexo. Sentes-te só. É só isso.
E pedes para desligar. E prometes, prometes outra vez tomar chá. Sem muito medo que ela te envenene. Sem muito medo que ela não cruze as pernas como imaginaste. Sem muito medo que ela fale ao mesmo tempo que tu. Só não sabes, e realmente não sabes, se ela ainda está só. Se ainda está aborrecida. Não soubeste como ela era. Ela não e disse porque pensaste que era envergonhada.
E decides dormir vários dias de seguida. Queres continuar a imaginá-la. Já não sentes tão de repente como o mundo ficou enorme e te deixou lá atrás. Tão só como te sentes.

6 comments:

Manel Furtado said...

Grande texto. Apesar de não ser eu, ao ler quase que me sinto culpado. Muito subtil, forte, universal e pessoal. Escreves bem miuda...

Manel Furtado said...
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Anonymous said...

o texto ta fabuloso, lindo e profuderrimo, adorei.
sem palavras.

Énio said...

«Queres que te admirem. Também queres admirar.». Eu admiro-te. Admiro a pessoa que és. Mesmo sem akele contacto regular. Lembro-me quando tinha-mos aulas juntos (EVT). Os trabalhos? Esses fazíamos em casa, enquanto que os outros transpiravam na aula. Chegávamos com a nossa arte e consideravam-nos artistas. ;) Mas faltava-nos algo. Algo k tenho a certeza k já conquistaste. O carisma. O carisma de um verdadeiro mestre da arte. E o teu chega a tocar a genialidade. Um gande beijo deste teu amigo distante. Miss you.

ana said...

que bom ouvir tantas coisas boas! e chegaram em boa hora. o dia foi complicado, mas chegar a casa e ler em portugues tantas saudades dessas que se matam com as ferias poe-me logo mais contente. beijos em todas as latitutes e longitudes para cada um de voces! ********

Anonymous said...

Admiro-te muito, muito minha querida.E, desejo que essa tua verdade prevaleça intacta.